Cão como nós



Primeiro é preciso dizer que eu nunca gostei de cães. Que já cheguei a ser mordida. Que inúmeras vezes me esforcei para que o meu corpo não deixasse transparecer o medo que sentia quando algum cão decidia rondar, ou pior, saltar e ladrar perto de mim. Dar festas a um cão era algo que fazia como quem sacode migalhas e só quando tinha mesmo de ser, muitas vezes na esperança que, cumprida a missão, eles fossem embora.

E depois veio o Óscar. E fui descobrindo que ele não é um cão. Ou que é, como nós. E digo, em jeito de 'mãe', que o Óscar é o labrador e o cão mais bonito do mundo.

[Nunca como então eu senti o cão tão perto de nós. Sem propriamente ter mudado de feitio, ele estava por assim dizer mais atencioso, seguia-nos pela casa toda, estava, como nós, à espera, como nós, digo bem, como se fosse um de nós. E tenho de reconhecer que era. Um grande chato, sim, um cão rebelde, caprichoso, desobediente, mas um de nós, o nosso cão, ou mais que o nosso cão, um cão que não queria ser cão e era cão como nós"]

Já o conheci tarde. Com doze anos. E apesar de tanta gente dizer que não parece nada, por ter tão bom ar e tanta energia, sabemos todos que a idade não perdoa e vai mostrando alguns sinais.

Ainda há uns tempos, acordou a mancar e ficamos todos num pânico triste, a dizer que ía passar, mas com medo que assim não fosse e que fosse um princípio do fim.

[Alguém falou da tristeza e do vazio do olhar dos animais. Vi tristeza, em certos momentos, no olhar do cão. A tristeza de quem quer chegar à palavra e não consegue. Mas não vi o vazio. O vazio está talvez nos nossos olhos. Quando por vezes nos perdemos dentro de nós mesmos. Ou quando buscamos um sentido e não achamos. O cão sabia o sentido, o seu sentido. E nunca se perdia.]

Já o conheci tarde. Não o vi nos festivais nem a nadar pelo mar adentro. Nem a puxar ninguém de patins pela trela. Mas vi-o a conquistar-me aos bocadinhos, com a sua atenção, que passou a dividir-se. Com as manhas e os mimos de quem sente que eu ía ficando rendida e capaz de lhe fazer todas as vontades. "E qual é o problema? Com doze anos um cão já tem direito a ter algumas mordomias". Eu não cheguei para ensinar, isso ele já sabe!

[Cão é cão. Mas de certo modo fomos ficando mais próximos, diria até mais companheiros.

Ele vinha deitar-se ao pé de mim sempre que eu estava a ler, a escrever, ou simplesmente a ver televisão. E à hora da refeição foi junto à minha cadeira que ele passou a enroscar-se, cada vez com mais frequência.

Eu gostava. Comecei até a ter um certo orgulho nisso e a sentir uma íntima satisfação com os ciúmes que essa atitude do cão provocava nos restantes membros da família.]

Não sei se foi tarde... Se calhar é assim a melhor forma de se conhecer alguém. Quando temos presente, a todo o instante, que não vai ser eterno.

Todos os dias sinto o privilégio de poder passear com ele, às vezes até conseguimos ir dar um passeio por entre as árvores logo de manhã (e esses dias correm sempre de forma diferente). E quando não há trabalho, levo-o para todo o lado, pela trela ou no banco ao lado do condutor, janela aberta e focinho de fora com orelhas no ar.

[É quanto me chega. As minhas armas e eu. O meu cão e eu]

Este Verão quase não fomos à praia. Os ares do mar fazem o Óscar esquecer-se da idade e das boas maneiras. Desata a roer toalhas e a escavar buracos por todo o areal. Só pára quando vimos embora. Quando começou a mancar o médico disse logo que era proibitivo e mesmo depois de melhorar toda a gente achou melhor não arriscar. É que além disso, já ninguém tinha paciência para aturar aquele histerismo. Mas quando o levávamos, dava gosto de ver. O rabo a abanar ainda mais rápido e o focinho a tentar guardar pedaços daquele ar. 

[Dei então por mim a conversar com o cão, sempre que estávamos sós. Digo bem: conversar. Porque se ele não chegava, como pretendia, à enunciação, não tenho dúvidas de que compreendia a humana fala. Pelo menos a nossa.]

Era o que no outro dia dizia - "gostava de conversar com o Óscar, nem que fosse por cinco minutos". 

Ainda não descobri como. Até lá, aproveito-o, como quem aproveita os últimos dias de Verão.


Excertos do livro "Cão como nós", de Manuel Alegre, que li há pouco tempo, num ápice.

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